
No mês de julho o Brasil recorda os 35 anos da morte de Cazuza, a voz rouca e verdadeira de uma geração inquieta. Aos 32 anos, o artista se despediu do mundo de forma tão intensa quanto viveu, deixando um repertório imortal e uma trajetória marcada por urgência, paixão e entrega total ao instante.
Cazuza não viveu de maneira planejada, tampouco partiu assim. Sua morte, causada por complicações da AIDS, revelou não apenas a fragilidade do corpo, mas também a ausência de qualquer estrutura formal para o que deixava. Entre versos de rebeldia e melodias que ainda ecoam, restou uma herança artística imensa, mas um patrimônio sem estrutura sucessória, sem orientação expressa, sem planejamento mínimo.
Lucinha Araújo: a voz que continuou
Diante do vácuo deixado pela falta de organização, foi Lucinha Araújo, sua mãe, quem assumiu o comando. Mais do que mãe enlutada, tornou-se guardiã do legado. Fundou, ainda em 1990, a Sociedade Viva Cazuza, instituição que até hoje cuida de crianças e adolescentes com HIV.
Ela não herdou apenas músicas e memórias, mas a responsabilidade de transformar uma herança difusa em algo viável, duradouro e estruturado. O que poderia ter sido fonte de disputas ou de apagamento da história tornou-se símbolo de continuidade, graças ao zelo de quem soube agir com amor e discernimento.
Obra gigante, estrutura pequena
Cazuza faleceu com poucos bens materiais. O apartamento em que morava pertencia aos pais. Não possuía um portfólio de imóveis, empresas ou aplicações financeiras. A fortuna que viria depois estava apenas em forma de versos e melodias.
Com o tempo, sua obra passou a gerar cifras expressivas: entre R$ 1 milhão e R$ 2 milhões por mês em direitos autorais, com um patrimônio estimado entre R$ 20 e R$ 30 milhões. Mas toda essa riqueza surgiu sem planejamento prévio e poderia facilmente ter se tornado motivo de instabilidade, se não fosse a estrutura familiar sólida que o amparava.
Cazuza não nomeou administradores, não indicou representantes legais para sua imagem artística, tampouco formalizou a gestão de seu acervo criativo. Também não há registros de doações em vida, constituição de holdings, contratos de cessão, seguros estratégicos ou qualquer instrumento jurídico voltado à proteção patrimonial. Ferramentas simples que, se utilizadas, poderiam ter garantido maior segurança à sua obra.
“O tempo não para”, mas a organização deveria ter começado
A ausência de estrutura sucessória não é, por si só, uma falha moral. Mas é uma omissão com consequências. Mesmo para quem não acumulou grandes bens em vida, a posteridade pode se tornar valiosa e vulnerável.
Cazuza viveu com intensidade, mas não projetou o que viria depois. Talvez por filosofia, talvez por negligência, talvez por acreditar que sua missão se encerrava com a última canção.
Contudo, quando um artista parte sem preparar a continuidade de sua criação, a responsabilidade recai sobre os que ficam. E nem todos encontrarão alguém como Lucinha, capaz de sustentar com firmeza e ternura o que foi deixado em aberto.
Legado maior que a própria vida
Cazuza não deixou mapas, apenas labirintos. E, mesmo assim, aqueles que o amavam conseguiram construir pontes. Sua falta de planejamento tornou-se uma memória de alerta: é possível ser livre sem ser negligente. É possível viver o instante sem abandonar o amanhã.
Hoje, sua voz ainda ressoa. Sua obra continua gerando valor. Sua imagem permanece viva. Mas tudo isso sobrevive não por iniciativa dele, e sim pelo esforço posterior de quem o amava e entendeu o que precisava ser feito.
Planejar também é amar
Cazuza nos presenteou com músicas que não morrem, versos que ainda ferem e verdades que ninguém mais ousava dizer. Mas deixou um vácuo em algo que não se resolve com poesia: a gestão do que fica.
Em um mundo onde a arte tem valor, e tem muito, não organizar a sucessão não é apenas um risco jurídico. É uma fragilidade afetiva. É deixar nos ombros dos outros a carga de decidir aquilo que deveria ter sido assumido em vida.
Amar a liberdade não exige desorganização. E proteger o que importa também pode ser um ato de rebeldia, contra o esquecimento, o improviso e a perda do que foi construído com tanto sacrifício.